03/04/2016

"Coube tudo na malinha de mão do meu coração"

Ela já tinha visto aquele rapaz algumas vezes em confraternizações de amigos em comum. Nunca tinham ido além de um "Oi, tudo bem?" que encerrava-se antes da resposta. Naquele dia ela se arrumara para ir à festa de casamento de amigos próximos. A maquiagem era mais discreta que o comum. Não procurava atrair olhares, mas sabia que eles viriam de qualquer forma. Lá estariam velhos conhecidos dos quais conhecia muito bem o hábito pernicioso de comentar a vida alheia sem muita compaixão. A cerimônia havia sido de uma beleza sutil que lhe tocara profundamente, chegando a escorrer uma lágrima pelo canto do olho. Sentiu no fundo do peito uma dor discreta mas insistente. Pensou que talvez fosse solidão, talvez empatia. Resolveu entorpecer seu corpo e sua mente. No meio da tarde já havia tirado os sapatos e deixado-se levar pela insistência do garçom que enchia seu copo. Entre conversas atrapalhadas e a euforia que o álcool lhe trazia trocou olhares com aquele rapaz com quem não tinha nenhuma intimidade. Percebeu certa persistência. Achou seu sorriso bonito. Pensou que beijá-lo talvez fosse uma boa ideia. Comentou com uma amiga em comum que não hesitou em correr para contar-lhe a novidade do desejo que havia ali surgido.  A essa altura até o sol já havia se retirado da festa. Só restavam os amigos mais animados, embalados pela alegria do álcool, fazendo um círculo na pista de dança para remexerem seus corpos freneticamente ao som do funk. Sua amiga chegou acompanhada pelo tal rapaz. Ele perguntou-lhe se queria ir para outro lugar. Era um sítio fora da cidade, não haveria muitos outros lugares para ir. Assim mesmo ela aceitou e ele foi guiando-a para a área do estacionamento, atrás das jabuticabeiras, onde não havia ninguém. Ela tropeçava em si mesma e começou a sentir náuseas depois de tanta cerveja. Seus pés se feriam com as pedrinhas no caminho. Chegaram a um local vazio e escuro. "Oi, tudo bem?" Trocaram meia dúzia de palavras tentando se conhecer melhor. Ele era mais jovem, tentava entrar na faculdade de medicina,  trabalhava nos fins de semana e levava uma vida simples. Um pouco mais alto que ela e com uma barba cheia e escura. Tinha um sorriso bonito e os olhos puros. Ela já era formada, pós graduada. Tinha um trabalho incomum e cansativo. Era poucos anos mais velha. Pele morena, curvas sinuosas. Um pouco acima do peso e com uma beleza pouco óbvia. Não havia o que dizer ali. Eles se beijaram sem muita cerimônia. Ela sentiu o rosto aquecer e o estômago embrulhar. Ficaram ali até perder a noção do tempo. Apesar de não sentir-se muito bem, ela gostou do beijo do rapaz. Acharam melhor voltar para não perderem a carona. Ele pegou seu telefone, mas não deixou seu número. Desceu na primeira parada, despediram-se com um beijo afobado, com sabor de reticências. Ela dormiu inspirada naquela noite e então, esperou que ele ligasse. Ela havia saído de um relacionamento recentemente e não planejava relacionar-se tão cedo, mas algo naqueles olhos mexeu com ela. Quis que ele a procurasse. Ela tinha planejado evitar o reencontro, mas pegou-se pensando nele com maior frequência do que desejava. Duas semanas e nada. Arrumou uma desculpa para pedir a uma amiga o contado dele. Criou coragem e mandou uma mensagem. A resposta só chegou na dia seguinte. "Oi, tudo bem?" Encontraram-se em outra festa poucos dias depois, mas ambos acompanhados por vários amigos, ela chegando, ele saindo. Trocaram olhares tímidos e se cumprimentaram. Continuaram trocando mensagens, às vezes com um intervalo de uma semana. Enquanto isso ela estava às avessas com o fim do namoro. Ela era muito impulsiva e ansiosa, mas dessa vez conseguiu esperar. Chegou a apagar o número do telefone dele para tentar ajudar. Mas a vontade de vê-lo continuava e logo arrumava um jeito de entrar em contato novamente. Até que ele a chamou pra sair. Era um alívio e uma alegria. Talvez dessa vez conseguisse não ser engolida pela decepção de querer alguém. Marcaram algumas vezes até que conseguiram ir ao cinema. Ela estava surpreendida pela maturidade dele. Chegou atrasada, mas ele já havia comprado os ingressos. Assistiram o filme de mãos dadas. Ele acariciava suas mãos e ombros de um jeito tão delicado que ela tinha vontade de chorar. Beijava suas bochechas e seu cabelo. Saíram de lá e caminharam um pouco. Enquanto se beijavam ela sentia o coração se aquecer e o corpo arrepiar. Foi a primeira vez que fizeram amor. Ele tinha uma inesperada firmeza e autoridade na cama, sem deixar o jeito atencioso. Foi a habilidade dele de surpreendê-la que a conquistou. Ela quis repetir, mas novamente o contato entre os dois voltou a ficar distante. Ela insistia em mandar mensagens. Às vezes ele respondia educadamente, às vezes não respondia. A vontade dos amigos contribuía para que eles sempre sem encontrassem. Não havia muito assunto, mas a conversa era sempre boa. Ele atabalhoado entre vestibulares e cursinhos, ela tentando se distrair dos problemas do dia-a-dia. Viajaram em grupo, foram a outras festas. Alternavam momentos de amor e amizade. Estavam indo bem assim. Sem pressão, sem expectativa. Dois meses depois estavam se vendo mais que o planejado. Ele resolveu tirar uns dias de folga dos estudos e ela, uns dias de férias. Passaram algum tempo à sós. Ele tocava seu rosto e acariciava seus cabelos até que ela dormisse, depois ficava parado, imóvel para que ela não acordasse. Trocavam olhares de carinho e de desejo. Falavam bobagens, trocavam beijos. Faziam amor com fogo e sem pressa. Ele fazia carinho, ela fazia café. Ela sentia-se confortável e protegida ao seu lado. Há muito tempo não estava com alguém que admirasse assim. Fazia-se de madura e experiente, mas na verdade estava irremediavelmente encantada. Tentava ser carinhosa e atenciosa. Sabia que ele merecia. Até que ele teve que ir. Foi e depois mandou mensagem dizendo que não poderia voltar. Ele tinha objetivos e um longo percurso para alcançá-los. Não poderiam se ver mais. Ela compreendeu, fazendo aumentar a admiração. Ele tinha a persistência que faltava nela. Ela queria acompanhá-lo, ele dizia que era impossível. Embora ela se dispusesse a todo momento, ele quis que a jornada fosse solitária. Ela Tentou manter contato por alguns dias mas já estava feito. Seus próximos encontros não foram muito bons. No início pareciam conter seus desejos, mas com o tempo a vontade também se foi. Ambos entendiam a urgência da situação e sabiam que era melhor assim. O sentimento foi sumindo como em fade-out. Continuariam como conhecidos. Ela acabou aceitando que fosse assim enquanto a roda da vida continuava a girar. A notícia chegou pelas redes sociais: Ele estava se mudando para outro estado. Foi como se o tempo parasse. A garganta deu um nó e seu corpo parecia ir diminuindo, comprimindo até quase estourar. Ela sabia que essa hora um dia chegaria e já tinha se desapegado da ideia de serem um par. Era o que pensava. Doía saber que agora, mesmo que voltasse a vontade de ficar juntos, não poderiam. Sentiu ciúmes. Agora outras mulheres veriam os olhos puros e o sorriso bonito que tanto evitara nos últimos meses. Mais cedo ou mais tarde ele conheceria outro alguém mais adequado que lhe coubesse melhor. Foi assim que aconteceu das outras vezes. Ela quis lhe dizer o que sentia, mas não encontrava as palavras. Não sabia se estavam entaladas ou se sequer existiam. Ficou na dúvida se era amor ou vaidade.  Chorou. Não sabia se era pela concretização da perda ou porque finalmente caíra em si. Sentiu-se só. Fazia força para esconder a intensidade com que os sentimentos se projetavam dentro dela. Sempre fora assim. "É sempre amor mesmo que mude", pensou. Não gostava de coisas pequenas e tratava sempre de criar para si um mundo imenso e particular. Com ele não havia de ser diferente, embora tivesse achado assim. Ela era um furacão e passava os dias esperando alguém que lhe trouxesse calmaria. Por um momento pensou que pudesse ser ele. Lembrou da tranquilidade que ele lhe passava. Não conseguia lembrar se foi realmente assim ou se era imaginação. Os sentimentos lhe afogavam. Tentou procurá-lo novamente. "Oi, tudo bem". Ele já estava vivendo outra vida. Passou a respondê-la friamente, evitou o encontro quando foi possível e fugiu das palavras de amor. Para ele talvez fosse novidade. Para ela era um silêncio esmagador. Ela sabia que não era certo derramar-lhe palavras tão densas nessa fase tão importante. Pensava que nada na vida era definitivo e que ele poderia voltar, mas lembrava das suas experiências anteriores. A roda da vida continuaria a rodar. Sentiu ter que abrir mão do pouco que tinha, embora soubesse que era quase tudo fruto da sua imaginação. Vivia dias diferentes. Dormia muito e acordava pensando em músicas boas. chorava um choro suave e passava muito tempo calada. Sabia que aquilo tudo mais cedo ou mais tarde ia passar, não sabia se isso era bom ou ruim. Resolveu sentar e escrever a história de nós dois.