23/02/2015

Tocando em frente



Tem dias que não é fácil levar a vida. Todo dia nasce o mesmo sol, todo dia é um amanhecer diferente.Tem dias que a cama te segura, naquele calor quase materno que te faz esquecer que há vida lá fora, enquanto o despertador toca inconvenientemente. Tem dias que o pensamento acorda antes do corpo te levando nas marés da imaginação de tudo aquilo que poderia ter sido. Tem dias que, ao abrir os olhos, só se consegue agradecer a Deus por estar vivo mais um dia. Tem dias felizes, dias tristes, dias raivosos e dias que tanto faz.

São esses dias inertes que a vida espera. Espera que você não esteja esperando.

6:55 da manhã, eu sozinha no carro, trânsito parado. "Não vou chegar no trabalho a tempo". Carros, motos, sinal fechado. Freio, ponto morto. Moço fumando. Casal discutindo. O rádio está ligado. Não sei em que momento eu o liguei e em qual estação está. Não ouço, não vejo, não penso. Ainda estou dormindo ou foi a vida que parou?

"Conhecer as manhas e as manhãs, o sabor das massas e das maçãs." Canta a voz suave que vem do rádio. Eu conheço essa música. Almir Sater, Renato Teixeira, Tio Binha, muita gente já a cantou. Seria um daqueles momentos em que as lembranças deveriam me tomar, eu deveria ficar muito feliz, ou muito triste, sei lá. Deveria ser um daqueles momentos que mexem com a gente. Não foi.

O programa acabou, o sinal abriu, o trânsito seguiu.

Mais a frente outro sinal fechado. Os carros a minha frente param. Paro também. Paradeza. Na rádio começa outro programa. 7:00. "Estou definitivamente atrasada". Outra música. "A
ndo devagar porque já tive pressa e levo esse sorriso porque já chorei demais". Sim. De novo. Foi aí que algo aconteceu.

Não sei quantas vezes já ouvi essa música. O primeiro verso sempre me faz desconectar. Um tanto clichê, normalmente penso. Hoje não.

Os acordes retumbaram no meu peito e se embolaram na minha garganta. Um aperto grande não me permitiu pensar. É que no vai-e-vem de sentimentos que não pertencem a ninguém, eu encontrava-me afogada entre culpas e mágoas, ainda que eu não soubesse que estavam ali.

"Só levo a certeza de que muito pouco sei, ou nada sei". Acho que é aquela velha sensação de estar fazendo tudo errado, de estar perdendo tempo.

Os carros andam. Cheiro de fumaça e lágrimas. Buzina, freio, ofensa. A viola ainda toca.

"É preciso amor pra poder pulsar, é preciso paz pra poder sorrir, é preciso a chuva para florir".

Amor, paz ou chuva, dos três ando necessitada. Corro para alcançá-los, mas eles parecem fugir de mim. Na ânsia, tropeço, caio. Nem a previsão do tempo está a meu favor. O ar quente e seco parece me arranhar por dentro, assim como o breve pensamento do que jamais serei feliz. Por vezes pensei ter encontrado a tal tríade que, em minhas expectativas, me trariam felicidade. Oásis. A sensação de perdê-los quando jamais os tive é talvez ainda pior. Penso que a dedicação que me sobra no amor, falta-me no trabalho. Competência ou merecimento? As duas alternativas me deixam ainda mais triste. Ainda me culpam pela falta de água. Se é assim, vou parar de tomar banho. Dança da chuva resolve? Já vivi isso antes, lembro. Isso também passa. Daqui a pouco estarei pronta para outra correria desenfreada atrás de amor ou de paz. Será que a vida anda em círculos?

Almir me interrompe. "Penso que cumprir a vida seja simplesmente compreender a marcha e ir tocando em frente".

Verdade. Alterno entre correr e parar, assim como o trânsito a essa hora da manhã. Se eu fosse sempre andando, ainda que devagar, talvez eu chegasse antes ou quem sabe mais longe. Vou tentando. Que outro jeito tem? Apesar de não saber bem em que ritmo a vida anda, sei que ela vai sempre em frente, isso sim essa música me ensinou bem.

Estaciono o carro na porta no serviço e desconecto o som. Tocar a vida. Tocar o dia. Tocar a música. Para um dia de "tanto faz", esse tanto fez! 


Tocando em Frente - Almir Sater